Uma experiência agroflorestal: a Fuga da Capital
- Elis Faustino
- 14 de mar. de 2021
- 3 min de leitura

Quando o governador Dória decretou novo lockdown eu já estava isolada num apartamento que não bate sol. Pouco havia afrouxado minha quarentena que era restrita apenas ao convívio familiar, pressenti que não suportaria mais um ano em retidão. Precisava dar um tempo da metrópole. Porém, para onde mais iria? Sem renda, nenhum edital para validar meu cambaleante ofício de escritora. Já estava conformada em arrastar meus chinelos pela casa quando uma amiga me contou que se inscreveu em um programa de voluntariado agroflorestal à poucos quilômetros da capital.
Paisagista e florista, eu a incentivei mesmo sem saber do que se tratava. Deve ser um termo para reflorestamento, pensei. Dias me remoendo, perguntei: e se eu fosse também? Mas o que eu poderia oferecer? Tenho os vasos secos e um caixote vazio prometido a uma hortinha, mas fico à espera da rotação planetária para entrar sol em minha sala. Acho que foi minha voz cansada e abafada que convenceu o proprietário. À princípio fui aceita como turista, por mais que a hospedaria estivesse fechada. Sua escuta atenta me aqueceu e parti desavisada para a Serrinha.
Chegamos após um forte temporal. A porteira anunciava o que me esperava. Uma guarita esculpida em azulejos e garrafas de vidro me lembrou Gaudí. À deriva, no lago turvo fui resgatada pela miragem de uma estrela flutuante que ao me aproximar revelou-se ser um imenso barco de papel, a Nau de Eduardo Srur. Paramos na primeira casa de um laranja intenso, deve ser a do patrão. Uma senhora de roupão nos recebeu. Ele não mora aqui, não. Lá pra cima, indicou fechando a porta. Eita, foi mal aí. Desculpa a confusão. Certa ela porque em pandemia não se pode confiar nem mesmo nos amigos. Subimos pela pista de uma trilha e nos deparamos com o corcovado de uma oca Xingu. Quem será que mora ali? Não ousamos perturbar. O mugido do touro nos guiou. Longas orelhas pendiam ao lado de seu chifre curto. Seu olhar desconfiado, porém doce, soube pelo homem de galochas brancas que lavava o curral que ele se chamava Norberto. Sua companheira Cleide e seus dois bezerros que ainda aguardam o batismo ruminavam curiosos para mim. Gentil, o homem deixou seus afazeres para nos levar até o idealizador do projeto de agrofloresta.
A lama havia descido pela encosta, exaurido de uma noite em claro o dono surgiu na varanda florida carregando um tapete desfalecido. Procurem a líder dos voluntários na Casa Amarela, pediu combatido. Pela estrada vermelha de cascalhos de tijolos partidos, se eu fosse arqueóloga, escavação eu faria. Encontramos resquícios de uma antiga olaria. Avistamos duas mulheres com facão na cintura, enxada nas costas, o sorriso escondido em seus sombreiros de palha. Tinham acabado de fazer o manejo do canteiro na Casa Maromba. Geralmente os voluntários ficam na Casa Refúgio, disse a líder, um quarto coletivo com beliches rústicas, mas dado as circunstâncias e o cancelamento dos eventos, abrigou-nos na hospedaria. O quarto n°5 da Pousada merece destaque e claro, onde fiquei. A cama dossel com seu véu embranquecido contrastava com a tinta artesanal de argila. Na cabeceira o rosto iluminado de Baco na coroação triunfal de Velázquez e próxima a entrada a beleza dA Origem do Mundo, de Gustave Courbet. Para o desassossego de Freud, nesta noite dormi bem.
Ao cair da tarde as voluntárias se reuniram com o dono no refeitório, onde jaz o tronco de uma paineira em decomposição. Intrusa, quis saber das atividades. Manejo. Roçada. Desassorear. Nucleação. Barrancos. Colheitas. Perguntei se poderia participar da caminhada de observação. Foi assim, despreparada, que comecei minha experiência agroflorestal na Serrinha.
(continua...
aguardem as próximas publicações)