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Já fui uma única molécula


A água possui a mesma estrutura molecular desde a formação do universo. Dois hidrogênio ligados a um oxigênio. O ciclo da água na Terra é um sistema fechado, isto é, não recebemos água de fora. Não tem uma torneira no céu. Se houvesse uma tubulação interplanetária, as águas de Mercúrio estariam em alta cotação nos garimpos. Eu beberia de Júpiter. Até me permitira um pouco de Netuno. Às vezes sinto um tremor. Um vapor dentro de mim. Um grito preso numa bolha.


A incansável ciência espera que a água continue sendo a mesma desde sua origem. Obediente a um ciclo. Escorre, evapora, chove, solidifica e tal, mas mesmo mudando sua forma continuaria contendo a mesma estrutura molecular. A água que está em meu corpo já esteve em outros corpos. A mesma água que passou por mim pode estar em você amanhã. Minha saliva já lambeu vales. Já fui cachoeira. Nevei. Estou no ar em toda parte. Toda a memória d'água também é minha. Toda memória minha também é da água. Somente a água para dizer onde ela mais gostou de habitar. 


A expedição oceonográfica Amaryllis, a bordo do navio de pesquisa Marion Dufresne, busca coletar sedimentos do fundo dos oceanos para entender a formação da Terra. Nas fossas abissais não tem corrente marítima. A circulação das massas de água ocorrem mais na superfície devido a troca do calor e ventos, mas nas camadas mais profunda a água é parada. Pode ser que exista uma molécula d´água que nunca evaporou, nunca emergiu. Está lá no fundo dos oceanos à espera. O mesmo se aplica, dizem os cientistas, a uma geleira de milhões de anos que nunca se sequer transpirou e de repente está por aí toda vaporosa. Imagina o que poderia causar uma água que vive pela primeira vez. 


A pesquisa pretende entender o que podemos esperar dessas águas adormecidas tão profundas. Será que terão o mesmo comportamento destas águas superficiais, domesticadas, habituadas com a polaridade da Terra que descem pelas descarga com seus redemoinhos previsíveis no sentido horário, água do dia-a-dia tão comuns que se chocam entediadas contra os para-brisas, aquelas que correrem dentro das valetas canalizadas em direção ao bueiro, águas que se moldam a forma sem a menor personalidade?


A parceria científica entre Brasil e França na expedição Amaryllis pode revelar as memórias de um oceano muito recalcado. Temendo a alteração da estrutura molecular da água que poderia se rebelar, repelir seus dois hidrogênios ou chamar outro oxigênio para compor o arranjo, tudo é possível, vai saber, pois a geometria dos cristais d’água são muito sensíveis e emotivos. Qualquer palavra se doem toda, ficam irregulares, broncudas, impregnados de mágoas, raivosas lacrimejando e escorrendo. Para não despertar velhas memórias, reviver traumas, cutucar as feridas, os pesquisadores desenvolveram dispositivos de capturas muito sofisticados que vão apenas observar, realizar leituras por fibra óptica capaz de escutar o lamento das águas submersas nelas mesmas. O objetivo não é trazer à tona nenhuma gota para não alterar o sistema sedimentado porque isso poderia causar a fúria nos oceanos e deflagrar uma crise climática sem precedentes.


O sucesso da expedição Amaryllis depende do tipo de memória que as águas oceânicas tem e a expectativa dos pesquisadores é de que apesar da Terra ter sido uma bola de fogo insuportável por bilhões de anos, espera-se que a água tenha tido uma infância feliz. Se tiver muitos traumas reprimidos, pode esperar por tsunami, ciclones e inundações quando essa água toda evaporar.



 
 

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