A sentinela dos livros
- Elis Faustino
- 24 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Bibliotecária por um dia
Tinha um tempo que procurava por um trabalho voluntário. Senti mais urgência depois do término de um relacionamento que me devastou como terra incendiada. Precisava ocupar minha agenda, conhecer novas pessoas, me envolver em algo para além de minhas questões existenciais. Já havia trabalhado como voluntária em agrofloresta. Capinar um capim, arrancar umas pragas, podar uns galhos, espalhar sementes, cultivar jardins espontâneos, me encher de vitamina D, tomar um banho de cachoeira ao meio-dia. Pensava em voltar pra roça, me afastar do mundo, chorar e escrever. Porém o algoritmo tinha me preparado algo diferente. Um post chamando para Formação de Voluntários. Sem saber pra quê, me inscrevi.
Era para uma ONG de acolhimento a pessoas LGBTQIAPN+ que foram expulsas de casa por serem quem são. Sei onde dói. Fui expulsa também. Nunca fiquei desamparada de fato no olho da rua, mas sei o que é não ter para onde voltar. Segregada do convívio familiar por ser sodomita, abominável, pecadora que contaminaria o lar com meu espírito maligno. O capeta também é pai. Fiz minhas malas. Fui morar num apartamento vazio da família. Minha mãe tratou de me dar conforto, mobiliou, pintou, foi comigo ao mercado para minha primeira compra como dona de casa. Dali pra frente era comigo. Lembro que comprei caixas e caixas de pasta dental. Minha mãe riu sem entender, mas talvez eu quisesse dizer que eu me cuidaria escovando bem meus dentes antes de dormir. Eu era só uma adolescente assustada, se bem que naquela idade meus pais já eram pais.
Para minha mãe que saiu de casa aos 16 anos para trabalhar como doméstica em São Paulo, achou que era tempo das filhas mais velhas caírem fora. Minha irmã veio junto, aproveitou o bonde, ao menos eu não estaria sozinha num apartamento vazio. Minha mãe queria mais entusiasmo de minha parte. Se ela tivesse recebido todo esse suporte quando saiu do interior do Paraná não ficaria de mau humor, reclamona como eu. Tudo era horrível. A cor bege das paredes. O sofá laranja e verde limão que minha irmã escolheu. Os quadros que eu escolhi para combinar com o laranja e verde limão. As plantas que nunca vingaram. A lasanha congelada. A conta de luz. Lembro do drama que foi escolher o acrílico do box do banheiro. Qualquer um, mãe. Eu estava exausta. Só queria dormir. Minha apatia não era ingratidão. Não saí de casa para cursar faculdade longe. Não foi um projeto de independência. Não houveram despedidas. Nem cartões de boa sorte. Não sabia lidar com o que estava acontecendo comigo.
Poderia haver outros jeitos, outras transições, mas quem é LGBTQIAPN+ muitas vezes é chutade do ninho. Alguns voam. Outros caem de cara no chão. Talvez a ONG seja uma cama elástica para amortecer a queda. Eu tive um colchão de penas de ganso, reconheço, mesmo assim perder a referência do lar criou uma fissura na minha identidade. Construí uma independência carente. A partir de então buscaria segurança e estabilidade porque dentro de mim minhas fundações estavam fincadas em areia movediça. Sempre acho que posso ser expulsa, perder tudo, estou em constante alerta, pronta para partir e que não devo me demorar aos lugares. Um sentimento de impermanência e deslocamento constante.
Agora, e quem é expulsx debaixo de paulada? Quem precisa fugir para não morrer? Quem não tem para onde ir?

A primeira vez que fui à ONG foi para participar da palestra de Formação de Voluntários e Letramento na sigla LGBTQIAPN+. Como elos são organizadinhes, né? Conheci a dimensão do projeto quando visitei o galpão, onde fica a sede e acontece todo o babado, oficinas de automaquiagem, oficinas de dança e teatro, oficina de muai thay, plantão de escuta, plantão de empregabilidade, a ioga para todes, ateliê de costura, oficina de poemas e de escrita que quero muito me inscrever, oficinas de crochê que minha mãe ia adorar; fico doida querendo participar de tudo.
A chamada para voluntariado era para trabalhar na biblioteca integrada ao projeto das bibliotecas comunitárias LiteraSampa. O acervo dedicado a autorxs LGBTQIAPN+, feminismo, negritudes, indígenas e asiáticas. Sinto-me uma guardiã de livros que foram renegados, censurados, boicotados, apagados pelo patriarcado machista capitalista preconceituoso peçonhento branco cristão. Sou uma sentinela dos livros quando visto minha armadura de bibliotecária.
Meu primeiro dia como bibliotecária aprendi a mexer no sistema de empréstimos, fiz cadastro e carteirinha, papeei com os frequentadores, tirei pó das estantes, organizei as fileiras, passei um pano no chão. Li. Queria ler tudo. Minha vida de bibliotecária segue como Montaigne dedicada aos livros, ao estudo, conhecendo novxs autorxs, respirando entre páginas, mergulhando entre estantes. Tudo que uma aprendiz de escritora precisava, certo?
CLUBE DE LEITURA
Se você está chegando agora na newsletter, quero lhe convidar para participar do nosso Clube de Leitura. Os encontros serão online. Gratuitos. Mês que vem, novembro/24, vamos ler e comentar o livro da Eileen Myles, escritora americana.
Já começaram a ler? Encontram fácil o livro?
Duração de 1 hora.
Todo segundo sábado do mês às 10h.
No dia do evento vou enviar por email o link a todos que estão inscritos na newsletter.
Data: 09/11/24 sábado
Horário: 10h
Local: online via Meets
Título: Chelsea Girls
Autora: Eileen Myles

Resumo retirado da página da Editora Todavia:
Eileen Myles nasceu em 1949, nos Estados Unidos. Publicou livros de poesia, jornalismo literário e ficção. Foi bolsista Guggenheim e recebeu o prêmio Shelley da Poetry Society of America e o Lambda Literary Award na categoria ficção lésbica, e foi indicada pela Slate/Whiting Second Novel List.
Dividido em episódios curtos, que transitam entre o humor, a confissão e o drama, CHELSEA GIRLS traça um retrato assombroso de uma vida intimamente ligada à arte. Poeta, performer, romancista e jornalista, Eileen Myles é, nas palavras da escritora Deborah Levy, “a peça perdida para qualquer um que só tenha lido escritores homens da geração beat”. Este romance é ao mesmo tempo um testemunho do caldo cultural que agitou Nova York nos anos 1970 – as festas, os bares, os festivais, a música e a poesia – e um relato de quem ajudou a forjar essa época. Uma crônica moderna de como uma jovem escritora quebrou com as correntes de uma rígida identidade cultural que jamais a definiu.