Zero Açúcar
- Elis Faustino
- 19 de dez. de 2024
- 2 min de leitura

Espero que os drones alienígenas não estraguem o meu natal. Comprei um panetone zero açúcar para minha analista, mas não sei dizer se ela tem alguma restrição alimentar. Assumo: a projeção é minha. Sou eu quem desejo reduzir o açúcar por causa da pré-diabetes. Posso fingir que me preocupo com a saúde da minha analista, mas sabemos que entre nós não cabem mentiras. Se eu disser que o zero açúcar é um tipo de cuidado, a última sessão poderá desvelar a perversidade do meu controle sobre as pessoas, o quanto me faço de boazinha pelo bem-estar dos outros em detrimento das minhas necessidades, meu vitimismo escancarado à espera de recompensas, minha incapacidade em dizer não. Melhor comprar outro panetone que não dê bandeira. Vou trocar por um tradicional. Será que ela gosta de uvas-passas? Ou seria melhor ostentar um panetone de chocolate gigante trufado, lambuzado, recheado com gotas colhidas no orvalho? É tão cansativo impressionar os outros. Agora, e se ela detesta panetone?
No poema de Ana Martins Marques, ela diz:
"Andamos um pouco pela praia
a certa altura me dei conta
de que nunca perguntei onde ele nasceu"
Minha analista é um alienígena para mim. Ela me perguntaria o que eu desejo saber sobre ela. Nada de mais. Apenas queria saber se gosta de panetone. Por que isso importa? Queria ser capaz de lhe dar uma lembrança de fim de ano. Por que tem essa necessidade em ser lembrada? É só uma gentileza, uma doçura. Por que você tem a necessidade em ser gentil? Porque quero que gostem de mim. Por que não gostariam de você?
Silêncio no divã.
Se eu for zero açúcar, quem vai me amar?
Mas não é o excesso de açúcar que está lhe matando?
É melhor eu apenas me despedir na última sessão do ano. Sem abraços. Sem aperto de mão. Sem panetone. Zero doçura. A psicanálise é assim. Até o ano que vem, ela dirá. Até, sairei fechando a porta.
Hoje de manhã, abri o panetone zero açúcar e comi.




