Um Pintado Inteiro
- Elis Faustino
- 9 de jan.
- 4 min de leitura

Quis seguir minha intuição. Deveria ter assistido um videozinho. Queria preparar um peixe assado para ser o prato principal na ceia de ano novo. Nunca escolhi um peixe fresco inteiro. Meu cunhado sugeriu um Pintado, Robalo ou Tambaqui. Fui ao supermercado, onde minha mãe recomendou comprar o peixe. Esperava que me indicasse uma peixaria nobre, mas ela disse que peixe era tudo igual. Escolhi o Pintado.
Deleguei ao peixeiro que escolhesse o melhor. Ele me perguntou se era para cortar a cabeça e o rabo. Imaginei meu Pintado grande e roliço entrando numa bandeja de prata rodeado de alfaces, batatas e rodelas de lima da pérsia. Um espaço ao centro da mesa reservado para o meu Pintadão. Farofa de banana da terra ao lado. Arroz selvagem do outro. Salada com figos e tâmaras. Romãs e castanhas para enfeitar. Digo ao peixeiro somente para limpar. Quero a cabeça. Quero o rabo. Ele retira meu Pintado do gelo, pesa e vai para trás da bancada. Não consigo ver. Ele desce o facão. Habilidoso, penso. Conversa com alguém no corredor distraído. Fico receosa que ele fatiou por engano meu Pintadinho. Mas lá vem o Pintadão com seus bigodes me olhando pelo saco plástico.
Nunca assei um peixe.
Pensei em fazer um peixe na brasa assado em folha de bananeira. Porém, acender churrasqueira com todo mundo vestido de branco para o réveillon me fez desistir. Perguntei para meu pai como ele fazia os peixes que ele comprava no Ceasa. Sal e fogo. Meu pai é um homem prático. Minha mãe me deu a dica do limão. Acrescentou um temperinho que não entendi o nome. Tentei anotar. Ela não sabia soletrar. Sem paciência, disse que eu poderia comprar qualquer um desses temperos prontos. Ah, não, meu peixe não vai ter o mesmo sabor que todos os outros. Preparei um buquê de ervas. Um caldo de limão com alecrim, orégano, manjericão, hortelã. Qual tempero será que me recomendaria o videozinho? Arrisquei. Abri a barriga e despejei. Reguei bem. Deixei de molho na manhã do dia 31. Acho que duas horas para assar um peixe deve ser mais que suficiente. Fiz meus cálculos. Às oito horas serviria meu Pintado com uma entrada triunfal.
Às seis horas da tarde, embrulhei meu Pintado em papel alumínio. Caprichosa, enrolei duas vezes e tampei qualquer brecha que pudesse estragar o cozimento. Deveria ter assistido um videozinho. Os primeiros convidados chegaram. Minha irmã e meu cunhado que vieram apenas para ceia, não ficariam até meia-noite para não atrapalhar a janela de sono do bebê. Chamei o cunhado para ver o Pintado. Acendi a luz do forno. Lindo, ele disse. Confiei que fiz certo. Ele manda bem na cozinha. Digo à minha irmã que ela se deu bem arrumando um marido que faz a feira, adora promoções de mercado, faz a comidinha do neném, prepara o jantar, adora churrasqueira, faz o almoço de domingo, retira a mesa, lava a louça. Nem deveria elogiar um homem funcional capaz de se alimentar, mas poderia ser pior, digo a minha irmã, imagina se além de amamentar você teria que se preocupar com o que o seu marido vai jantar?
Depois de duas horas de forno, pergunto ao meu cunhado se ele acha que o Pintadão já chegou no ponto. Ele cutucou o peixe com um garfo. Mais um pouco. Confiei. Mais pessoas foram chegando. Eu preocupada em pegar as taças. Oferecer azeitonas. Sentem, por favor. Corri para a cozinha para finalizar as batatas. Cutuquei o peixe outra vez, mas será que é que nem bolo que o garfo tem que sair limpo? Chamo meu cunhado que sabe espetar. Ainda não, ele diz. Eu reservei o caldo, digo, será que não está na hora de regar o peixe? Não, ele balança a cabeça como se eu tivesse falado um grande absurdo, joga fora isso aí. Joguei. Mais meia hora, ele diz. Tudo bem, nem todo mundo chegou ainda. Mais meia hora, ajusto o timer.
Eis que chegou a minha mãe. Mãe, vem cá. Ela abriu o alumínio, olhou, nem precisou do garfo e disse:
─ Ihhh. Pode tirar.
Eu tinha preparado a casa para um clima de festa. As luzes estavam baixas, indiretas. Troquei as lâmpadas brancas assépticas da cozinha por luzes coloridas. Estava escuro quando tirei o Pintado do forno. Acendi a luz do celular. Puxei a primeira camada de papel alumínio. Esperei o vapor sair. Sinal de que ainda está úmido, pensei. A segunda camada de papel alumínio removi com todo cuidado. Vi o couro grudado. Saiu a pele como se fosse um creme. O rabo descolou do corpo. A cabeça ainda estava ali meio descascada. Diante de mim: um peixe nu. Branco. Mole. Desfazendo-se na espátula. Incapaz de transferir para a bandeja rodeada de alfaces, batatas e rodelas de lima da pérsia, chamei meu cunhado. Me ajuda aqui!
O especialista veio. Tentou acender a luz. Que droga. Eu segurei o celular. Ele se aproximou. Cheirou o vapor. Delícia. Pegou o garfo como um cirurgião. Nossa, está desmanchando. Ele elogia. Muito bom. Eu deveria ter assistido um videozinho. Sem a menor cerimônia ele esmagou o peixe in-tei-ri-nho. Amassetou! Tu-do! Até as vértebras se perderam no meio da paçoca que ficou meu Pintadinho. Ah, não, assim não! Ele pegou a espátula com firmeza e transferiu para uma travessa de vidro. O homem tem uma autoconfiança que toda a mulher deveria ter. Meu cunhado ainda misturou os fiapos de peixe com as batatas. Por fim, espremeu um limão como se fosse um chef Michelin.
Meu Pintado virou uma bacalhoada qualquer. Sem alfaces. Sem rodelas de lima da pérsia. Sem bandeja de prata, utensílio que eu nem tenho. Minha mãe veio espiar. Imaginei, disse. Imaginou o quê?, perguntei. Ela me explicou que peixe com couro não se põe em papel alumínio. O que é peixe de couro, mãe? Aquele que não tem escamas. Dependendo do tamanho, nem com escamas eu enrolo em alumínio. Ah, respondi. Deu muitas dicas valiosas e disse tudo o que eu deveria ter feito e não fiz. Danada. Eu, definitivamente, deveria ter assistido um videozinho.
Meu cunhado pegou um pano de prato engordurado, segurou a travessa, entrou na sala anunciando o peixe, colocou meu Pintado no canto da mesa perto das azeitonas.
Quantas vezes deixei escapar meu momento de glória?
Eu não consegui comer meu Pintado de tão arrasada que fiquei. Assim comecei meu ano novo, como sempre fui: triste e bêbada.




