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Tanatose - a arte de se fingir de morta

Assisti no cinema o filme A Substância da diretora Coralie Fargeat. Adoro o gênero body horror porque possuir um corpo é um horror constante. Como diria Mieko Kawakami em Peitos e Ovos, "Por alguma razão tenho um corpo que sente fome por conta própria, que fica menstruada por conta própria, e estou presa dentro dele - essa é a sensação que tenho". Minha religião ou espiritualidade ou fantasia é que sou feita de algo além deste corpo, energia cósmica em sua máxima potência, uma partícula divina que resolveu dar um tempo da eternidade para baixar nesse corpo tão mortal. Talvez eu tenha nascido nesse corpo para experimentar a morte porque a vida eu já sou.


Lady Gaga numa entrevista foi questionada se pudesse fazer qualquer coisa sem sofrer as consequências, o que experimentaria? A morte, disse sem piscar. É um pensamento encorajador quando me encontro num leito de hospital depois de uma cirurgia para remover os tecidos fibrosos da endometriose que lacrou meu ventre, rígida como um granito por dentro. Talvez seja necessário remover seu útero, disse o médico antes de me operar, e seu ovário direito está do tamanho de uma laranja azeda. Você pensa em ter filhos? Amputaram parte do meu intestino, o soro pingava, o dreno sugava o pus, tudo ia mal, eu sabia, ninguém dizia. Não me davam esperança. A madrugada era fria e a febre não cedia, entre bips e os passos apressados das enfermeiras, neste planeta distante vi o sol nascer, talvez o último, e penso: Estou pronta.

 

foto de silene andrade Saruê - White-eared Opossum


Mantenho a serenidade de um saruê. Minha resposta diante do perigo não é correr ou lutar, meu sistema nervoso me programou para me fazer de morta. Os animais que praticam a filosofia da tanatose são seres evoluídos que entenderam que morrer é uma performance que a gente se prepara a vida inteira.


Você sabia que o saruê é parente do canguru? São mamíferos marsupiais que carregam seus filhotes numa bolsa. Imagina como seria o mundo se a espécie humana fosse parente do saruê. O embrião seria gerado dentro da fêmea, até aí sem novidades no mundo mamífero, mas quando a barriga começasse a crescer, a lombar doer, lá pelas 22 semanas, a fêmea entraria em trabalho de parto. Entregaria o feto ainda em desenvolvimento ao macho porque ele seria o único com o saco gestacional capaz de levar a gravidez até 40 semanas. Se o macho não estiver ao lado da fêmea para receber o feto, ele não sobrevive.


Queria ver se existiria projeto de lei que consideraria homicídio aborto após 22 semanas. Queria ver a legalização do aborto. Queria ver as campanhas religiosas contra o abandono paterno. Queria ver no jornal a manchete dizendo que encontraram um bebê na lata do lixo. A polícia identificou um suspeito. Um sujeito de camisa social dobrada até os cotovelos sendo algemado na faculdade durante a aula de econometria. “É que carregar um filho agora acabaria com meu futuro", diria o pai.


Eu ia gostar de ser um saruê. Me fazer de morta de madrugada quando o bebê chorasse. Ficaria debaixo do edredom com o rabo enrolado, o corpinho rígido como uma defunta, sem muito exagero para não perder a dramaticidade, deixaria somente a ponta da língua pra fora e os olhos levemente revirados.

Morri.

 

Eu faria um filme de terror assim. Vou ligar para Coralie Fargeat.

 
 

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