Meu bem, eu não estou bem...

Hoje eu não estava uma boa pessoa. Reconheço meu mau humor. Minha ignorância ao dar coices no ar. Hoje eu maltratei quem quer que estivesse ao meu alcance. Disparei gestos. Deixei o dia de muita gente pior.

Eu poderia me justificar. Dizer que estou no meu direito. Todo mundo tem um dia ruim. Ao invés de pedir desculpas posso colocar a culpa nas circunstâncias. O trânsito enlouquece qualquer um. Estou com insônia crônica. O dinheiro é escasso. Não transo tem uma penca. Meu quadril dói o dia inteiro. A louça na pia. A roupa para dobrar. Os cachorros latem para qualquer barulho. Tem uma obra no andar de cima. Meu chefe é um desgraçado. Ainda tenho um idoso para cuidar.

Nem percebi quando assumi os cuidados de um idoso. Aconteceu. Por destino. Por ser a filha mulher, solteira, lésbica, sem filhos. Que trabalha em casa. Não me pareceu na época que eu tinha escolha. Não me foi dado a chance de recusar. Achei que fosse provisório. Logo dariam um jeito, mas tem dois anos que incorporei os cuidados. É a comida na boca. O xixi nas fraldas. O horário dos remédios. Carregar no colo. Não tem enfermeira. Ninguém me remunera.

Toda manhã quando acordo desejo que ele tenha parado de respirar enquanto dormia. Seu bom dia já estraga meu dia porque sei que estou presa numa rotina doméstica. Quando ele morrer, nem sei se serei capaz de chorar. Já choro todos os dias. Acho que quando ele se for, eu finalmente voltarei a sorrir, mas ninguém poderá perceber minha felicidade. Temo me tornar carrancuda. Será que azedei de vez? Meu rosto pesa feito mármore. Em minha garganta tem sempre um engasgo. Estou envelhecendo antes do tempo. Estou adoecendo também.

E hoje, bem, hoje garoava. Expliquei pro cachorro, mas ele não parava de arranhar a porta. Havia uma mudança no 16º andar. O elevador levou uma eternidade. Na portaria instalaram uma maldita catraca, como se já não bastasse o reconhecimento facial no portão. O sistema estava fora do ar. O cachorro puxava a coleira. Meu pulso estrangulava. A passagem de veículos se abriu. Por ali escapei. A porteira chamou minha atenção. Disse que iria enviar uma multa. Eu não queria me tornar a branquela que maltrata os outros. Condenava as pessoas que descontavam nos outros suas frustrações. Vendo a porteira cumprindo seu papel, respondi:

─ Vai à merda, meu bem!