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Basta olhar para essa mulher


Saí do oftalmologista com as pupilas dilatadas. Procurei o Dr. Despret depois que senti uma pontada no olho direito. Acordei com uma pressão muito forte no globo ocular. Percebi minha visão estava embaçada. Pisquei muitas vezes. Lavei com soro fisiológico. No espelho tentava ver se havia algum sangue pisado, alguma veia estourada, um descolamento de retina. Pesquisei quais eram os sintomas de glaucoma. Pensei em todos os livros que prometi ler, que carreguei na bolsa sem abri-los e por preguiça os abandonei.


Agendei uma consulta de emergência. Iria para uma região de São Paulo que me lembrou de uma paixão mal resolvida. Não sei o que me deu. Mandei mensagem. Nati tinha uma beleza que me dava vontade de aprender a desenhar só para pintar o seu corpo nu. De bruços. Nádegas redondas. Escápulas profundas. O cabelo molhado espalhado no travesseiro. Mas Nati era complicada. Eu sabia.


─ Hoje vou estar perto da sua casa. Quer comer uma empanada fim da tarde?


Imaginei que Nati fosse dizer estar sem tempo, tão ocupada com a vida que escolheu, tanta coisa para resolver, tanta gente para cuidar, cachorro para mimar, pneu para trocar, papelada para desenrolar. Tão frenética. Uma vida tumultuada. Uma lógica interna de prioridades que não incluía o amor. Sem tempo para passar a tarde de uma terça-feira nos lençóis de um motelzinho na Vila Madalena. Era pedir muito a sua presença. Supus, inclusive, que Nati nem me responderia. Ignoraria minha mensagem bufando irritada com um compromisso em cima da hora. No dia seguinte responderia cínica dizendo que quando viu já era tarde. Que pena, diria. Entretanto, surpreendeu quando ela respondeu prontamente:


─ Ali no seu Zé? Bora!


Fiquei tão excitada que me arrumei toda para ir ao oftalmologista. Passei rímel e lápis preto. Depois me dei conta que foi um erro. Não se pinta os olhos quando a visão está turva. Pensei que a consulta seria rápida, coisa de minutinhos. Eu nem estava mais preocupada com minha cegueira. Eu queria ver a Nati. Cheango ao consultório para minha apreensão tinha uma pessoa para se consultar na minha frente. A agenda estava atrasada. Avisei a Nati:


─ Vai demorar aqui. 


Pensei que ela fosse desmarcar porque ficaria muito tarde, mas Nati respondeu para eu não me preocupar, que iria se arrumar ainda. Poderia ficar tranquila. Pediu que a hora que eu saísse, avisasse. Era tão pertinho. Verdade, ansiedade boba. Relaxei no sofá da recepção. Eu esperava pelo momento em que eu pudesse segurar em suas mãos e dizer:


─ Tenho pensado muito em nós ultimamente...


O resto eu não ensaiei, mas estudava as palavras para a gente se entender de uma vez por todas. Eu queria escutá-la antes de tudo. Queria entender o que ela sentia. Não aceitaria outro "eu te amo" vazio. Pediria que me beijasse em público. Perguntaria o que nos impede de assumir. O que tem de mais importante do que nós. Queria que me prometesse não fugir mais.  Será que o Dr. Despret reconheceria um olhar apaixonado?


O doutor mandou a secretária dilatar minha pupila. Demoraria ainda mais. Afundei no sofá olhando para o teto. Os olhos lacrimejavam borravam a tinta preta. Ao me examinar, o Dr. Despret me disse que não era descolamento de retina, nem glaucoma. Também não havia nenhum machucado na córnea. Miopia estável. Talvez óculos para leitura, mas não agora, me disse, você ainda tem tempo. O oftalmo prescreveu um colírio e se não melhorasse daqui um mês era para eu voltar.


Quando saí do consultório, avisei a Nati por áudio. Não conseguia digitar. A luz me cegava. Caminhei uns três quarteirões com os olhos semicerrados. Senti umas gotas de chuva. Tardes de verão. Bom para fazer amor. Previsão de tempestade. Apressei o passo. Senti o celular vibrar no bolso. Deveria ser Nati dizendo que já chegou.


O seu Zé estava vazio ainda. Algumas pessoas apenas. Não reconheci a silhueta dela. Mandei uma mensagem de voz:


─ Estou aqui.


 Nati digitou algo que não consegui ler. Reclamei. Então recebi o áudio:


─ Aí está chovendo? Aqui está caindo o mundo. Tenho medo do que possa acontecer. Não vou. Me desculpe.


O riozinho se formava no meio fio. Pinguei o colírio. Um cisco saltou do meu olho direito. O embaçado se dissolveu. Então era isso o que me cegava. Resta compreender por quê me atraio por mulheres indisponíveis. Dessa ponto cego ainda não me curei. Pedi uma empanada de carne e uma cerveja. As pupilas voltavam aos poucos ao normal. Carregava um livro na bolsa. Abri Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem. Ainda era difícil ler, mas ler é meu vício. Enfiei a cara no meio das páginas e li:


“Basta olhar para essa mulher para compreender que não se poderia gostar de mim.”

 

 

 
 

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