Autêntica Faustino
- Elis Faustino
- 12 de dez. de 2024
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Meu avô não foi registrado. Seu pai é um homem branco qualquer. Meu avô é descendente dos Xucurus-Kariris, nascido em casa pouco antes do almoço, na cidade de Pedra, no interior de Pernambuco. Ele inventou seu próprio nome. A partir de agora me chamem de Américo.
Em São Paulo recebeu seu primeiro registro. Somente o nome não pode, disse a moça com a ponta da caneta na CLT, o senhor precisa de um sobrenome. Bote aí Faustino. Américo Faustino. Criou-se.
Quando meu avô desceu nas águas do santo batismo, quis acrescentar um nome cristão. Aproveitou o casório para alterar. Bote aí Elias porque Deus vem primeiro. Meu avô chama a si mesmo de Elias Américo Faustino. Meu avô não tem crise de identidade. Ele sabe quem é.
Meu avô faz o que precisa ser feito.
Meu avô é relojoeiro. Tem uma loja na galeria da Lapa. Na entrada, portão sanfonado de ferro e um sofá verde musgo em couro legítimo. Vitrines com Tissot, Rolex, Bulova, Omega, Breitling, Montblanc. Meu avô é especialista em recuperar o tempo. Ponteiros que tremem. Coroa torta. Cristal trincado. Pulseira sem fivela. Cucos que não saem da toca. Meu avô aproxima o ouvido no peito do Carrilhão. Escuta. Corações tumultuados. Atrasados. Adiantados. Meu avô os ajuda a entrar no ritmo outra vez. Abre sua gaveta de miudezas. No estojo de camurça escolhe a chave de precisão, alicate, pinça, parafusos dourados. Meu avô ajusta o relógio, acerta o compasso, estica as molas, lubrifica as polias, dá corda, troca bateria, mas sempre deixa cada um caminhar no seu tempo.
Meu avô faz o que precisa ser feito.
Aos domingos meu avô afina o violino. Temos as mãos delicadas. Temos as unhas longas e quadradas. Comparo nossas linhas da vida. Minha palma lisa de quem ainda não viu nada do mundo. Meu avô percorre labirintos. Ele ensaia violino no quarto com a porta entreaberta. Desliza o breu na crina. Apoia o queixo. Silêncio. Meu avô faz música.
Digo ao meu avô que talvez eu tenha encontrado um jeito. Não sei. Minha arritmia dispara. Peço que me dê corda. Oscilo. Descompassada. Dentro de mim um segundo dura horas. Sempre é tarde. Tudo já passou e eu não vi. Pergunto a ele quem eu sou. Se um dia chegarei a ser. Não tenho nome. Tenho apenas um caderno em branco. Ele me diz:
─ Minha neta, você é uma autêntica Faustino. Faça o que precisa ser feito.